“– Eu tô com fome!
– E eu não tenho fome? Você acha que eu não tenho fome?”
– E eu não tenho fome? Você acha que eu não tenho fome?”
Cruzo todas as manhãs a Central do Brasil com uma fome que se dissimula em enjôo, mas não perturba meu estômago, e sim outra parte de mim que não sei dizer qual. É uma fome que não acompanha apenas o meu corpo cansado da jornada do dia anterior, mas que preenche os espaços entre mim e os outros corpos que caminham, apressados, por aquela estação; uma fome que é interromper-se, que deixa aquela sensação incômoda de quando se perde o trem ou de quando o ônibus ameaça parar no ponto, mas vacila, descreve um arco e segue seu itinerário. É isso o que se vê nos olhos de cada personagem de Central do Brasil (1998), de Walter Salles – filme-testemunho da fome, da falta, do adiar-se perpétuo que nos faz brasileiros e humanos.
A fome preenche o filme – tal como o ar, o copo vazio de Gil – em suas mais distintas facetas. A primeira delas, que logo se identifica, e talvez a mais merencória, é a fome de Josué (Vinícius de Oliveira) diante do corpo da mãe, morta. Fome que se projeta, a partir daí, na figura de um pai-ausência, de um pai que absurdamente some, que se perde de si e dos filhos, erguendo morada em um terceira margem por ninguém conhecida. É essa fome, que também é de Dora (Fernanda Montenegro), que a une ao menino – a fome de uma falta, a fome que se sente diante de um prato que sabemos não poder preencher porque o feijão e o arroz aumentaram e não há dinheiro para comprá-los.
Essa fome de Dora não se engendra, porém, somente pela falta do pai. A fome de Dora, que traz em si mesma a Dor, é uma fome que se move por três faltas: a do amor, a do sexo e a da dignidade profissional. Dora vive sozinha num apartamento perdido em algum-qualquer buraco da cidade do Rio de Janeiro, onde os móveis e as paredes já dizem por si mesmos da fome que corrói as estruturas não só da casa, mas também daquela mulher sem marido, sem filhos, sem parentes, sem ninguém a quem ela possa projetar e de quem ela possa receber amor em troca. Uma mulher oca, capaz de vender um menino e, com o dinheiro, comprar um televisor velho, na tentativa de povoar suas lacunas com imagens e sons que insistem em não se definir por aqueles cômodos graves. Uma mulher cujo interior roto e vago ainda resguarda, todavia, uma centelha de querer – querer que a move ao resgate de Josué e que a une a ele na busca do preenchimento do desejo do menino, que também é seu, de encontrar o pai.
Mas a fome de Dora também é de sexo, de sentir-se fêmea, de despertar a vontade do outro masculino. É assim que ela conhece o caminhoneiro – bicho livre, sem rumo, sem laços – que a deixa só num botequim de estrada quando percebe que as mãos daquela mulher anseiam muito mais por ele como macho do que por uma simples retribuição ao almoço pago. E, atrás do vidro partido do basculante, a fome visita novamente o rosto de Dora, de carmim já inútil, contemplando o ir-se do caminhão e marcando-se, mais uma vez, pela impossibilidade. Dora é a história de uma impossibilidade.
E essa fome é também de dignidade profissional. Dora é professora aposentada, mas precisa sentar-se religiosamente na Central do Brasil todos os dias para registrar as histórias daquelas gentes e guardá-las, de modo amargo, em sua gaveta – esta sim abarrotada, mas também de faltas, de dizeres nunca chegados a seus reais destinatários. E eu acho que é por isso que sinto fome quando passo pela Central todos os dias rumo às escolas onde dou aulas de Língua portuguesa. É a fome de um reconhecimento que – eu sei bem – nunca será público, que nunca corresponderá a cada gota de sangue dos meus poemas. É a fome que é frustração de sonhos que nunca serão de todo realizados, de promessas feitas a mim mesmo que nunca serão cumpridas, de necessidade de transformação que nunca se dará por completo. É a fome dos que ousaram aventurar-se pela dor e pela delícia de sermos o que somos – professores, apesar de. E Dora é também o arquétipo de como nossa grande pátria desimportante trata aqueles que lutam pelo justo, pelo arrefecimento das dores, das desigualdades, das fomes. Dora sou eu. É por isso que sinto fome ao passar por lá todos os dias, porque Dora está lá, olhando-me, à espreita, interrogando-me acerca do porquê de eu prosseguir, de eu empreender viagem, se o meu lugar será (ou já é) ali, escrevendo cartas para ajudar no orçamento da casa.
E eu sei por que eu continuo, apesar de. Eu continuo porque Dora, embora me interrogue, me diz para continuar, porque é pela e na linguagem que ela recupera quem ela mesma é. É por escrever aquelas cartas que ela chega a Josué. E é por chegar a Josué que ela resgata a memória do pai. E é por resgatar a memória do pai que ela ajuda o menino. E é por ajudar o menino que ela se reencontra consigo mesma e vai se vestindo de cores até mesmo por ela não sabidas em si. É a linguagem, enfim, o único elemento capaz de dar de comer àqueles corpos famintos não só de Dora e Josué, mas de todos aqueles analfabetos que necessitam dizer, que encontram na professora o canal de se construírem como pais, mães, filhos, namorados, esposas, maridos para os outros. É por isso que prossigo, porque, sempre que passo por aquela estação onde todos somos brasileiros e humanos, Dora me oferece um prato de comida.