terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Central do Brasil ou ensaio da fome


“– Eu tô com fome!
– E eu não tenho fome? Você acha que eu não tenho fome?”

Cruzo todas as manhãs a Central do Brasil com uma fome que se dissimula em enjôo, mas não perturba meu estômago, e sim outra parte de mim que não sei dizer qual. É uma fome que não acompanha apenas o meu corpo cansado da jornada do dia anterior, mas que preenche os espaços entre mim e os outros corpos que caminham, apressados, por aquela estação; uma fome que é interromper-se, que deixa aquela sensação incômoda de quando se perde o trem ou de quando o ônibus ameaça parar no ponto, mas vacila, descreve um arco e segue seu itinerário. É isso o que se vê nos olhos de cada personagem de Central do Brasil (1998), de Walter Salles – filme-testemunho da fome, da falta, do adiar-se perpétuo que nos faz brasileiros e humanos.


A fome preenche o filme – tal como o ar, o copo vazio de Gil – em suas mais distintas facetas. A primeira delas, que logo se identifica, e talvez a mais merencória, é a fome de Josué (Vinícius de Oliveira) diante do corpo da mãe, morta. Fome que se projeta, a partir daí, na figura de um pai-ausência, de um pai que absurdamente some, que se perde de si e dos filhos, erguendo morada em um terceira margem por ninguém conhecida. É essa fome, que também é de Dora (Fernanda Montenegro), que a une ao menino – a fome de uma falta, a fome que se sente diante de um prato que sabemos não poder preencher porque o feijão e o arroz aumentaram e não há dinheiro para comprá-los.


Essa fome de Dora não se engendra, porém, somente pela falta do pai. A fome de Dora, que traz em si mesma a Dor, é uma fome que se move por três faltas: a do amor, a do sexo e a da dignidade profissional. Dora vive sozinha num apartamento perdido em algum-qualquer buraco da cidade do Rio de Janeiro, onde os móveis e as paredes já dizem por si mesmos da fome que corrói as estruturas não só da casa, mas também daquela mulher sem marido, sem filhos, sem parentes, sem ninguém a quem ela possa projetar e de quem ela possa receber amor em troca. Uma mulher oca, capaz de vender um menino e, com o dinheiro, comprar um televisor velho, na tentativa de povoar suas lacunas com imagens e sons que insistem em não se definir por aqueles cômodos graves. Uma mulher cujo interior roto e vago ainda resguarda, todavia, uma centelha de querer – querer que a move ao resgate de Josué e que a une a ele na busca do preenchimento do desejo do menino, que também é seu, de encontrar o pai.


Mas a fome de Dora também é de sexo, de sentir-se fêmea, de despertar a vontade do outro masculino. É assim que ela conhece o caminhoneiro – bicho livre, sem rumo, sem laços – que a deixa só num botequim de estrada quando percebe que as mãos daquela mulher anseiam muito mais por ele como macho do que por uma simples retribuição ao almoço pago. E, atrás do vidro partido do basculante, a fome visita novamente o rosto de Dora, de carmim já inútil, contemplando o ir-se do caminhão e marcando-se, mais uma vez, pela impossibilidade. Dora é a história de uma impossibilidade.


E essa fome é também de dignidade profissional. Dora é professora aposentada, mas precisa sentar-se religiosamente na Central do Brasil todos os dias para registrar as histórias daquelas gentes e guardá-las, de modo amargo, em sua gaveta – esta sim abarrotada, mas também de faltas, de dizeres nunca chegados a seus reais destinatários. E eu acho que é por isso que sinto fome quando passo pela Central todos os dias rumo às escolas onde dou aulas de Língua portuguesa. É a fome de um reconhecimento que – eu sei bem – nunca será público, que nunca corresponderá a cada gota de sangue dos meus poemas. É a fome que é frustração de sonhos que nunca serão de todo realizados, de promessas feitas a mim mesmo que nunca serão cumpridas, de necessidade de transformação que nunca se dará por completo. É a fome dos que ousaram aventurar-se pela dor e pela delícia de sermos o que somos – professores, apesar de. E Dora é também o arquétipo de como nossa grande pátria desimportante trata aqueles que lutam pelo justo, pelo arrefecimento das dores, das desigualdades, das fomes. Dora sou eu. É por isso que sinto fome ao passar por lá todos os dias, porque Dora está lá, olhando-me, à espreita, interrogando-me acerca do porquê de eu prosseguir, de eu empreender viagem, se o meu lugar será (ou já é) ali, escrevendo cartas para ajudar no orçamento da casa.


E eu sei por que eu continuo, apesar de. Eu continuo porque Dora, embora me interrogue, me diz para continuar, porque é pela e na linguagem que ela recupera quem ela mesma é. É por escrever aquelas cartas que ela chega a Josué. E é por chegar a Josué que ela resgata a memória do pai. E é por resgatar a memória do pai que ela ajuda o menino. E é por ajudar o menino que ela se reencontra consigo mesma e vai se vestindo de cores até mesmo por ela não sabidas em si. É a linguagem, enfim, o único elemento capaz de dar de comer àqueles corpos famintos não só de Dora e Josué, mas de todos aqueles analfabetos que necessitam dizer, que encontram na professora o canal de se construírem como pais, mães, filhos, namorados, esposas, maridos para os outros. É por isso que prossigo, porque, sempre que passo por aquela estação onde todos somos brasileiros e humanos, Dora me oferece um prato de comida.


domingo, 28 de dezembro de 2008

In praesentiam de seus olhos


“Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais.”
(Chico Buarque)

Nenhum outubro foi tão despedaçado quanto aquele em que seus olhos,
contrariando leis,
pediram abrigo nos braços de homem-criança meus
e se fecharam –
como ostras que moram na escuridão do mar
e guardam, em segredo, o-que-de-mais-bonito.

E, desde então, as palavras se debatem contra as paredes de mim,
espremendo-se por entre meus poros, na tentativa de um respirar já sabido impossível.
E, desde então, busco mansa ordem a essas esperas e sofrências.
E, hoje, por acaso, remexendo nessas caixas onde guardamos nosso passado
– sim, eu também tenho uma onde guardo o meu –,
encontrei novamente seus olhos, que se protegiam sempre da luz forte com ligeiro fechar-se.

Agora entendo que eles foram sempre meus e por isso se abrigaram em mim.
Agora entendo por que a eterna novidade do mundo se me apresenta sempre
por entre as pestanas minhas que se buscam sem explicação.

Mas as palavras, estas, porém, ainda são inúteis para te-dizer,
homem ordeiro e cumpridor,
que resolveu se hospedar na terceira-ignorada margem de um rio
onde a meus olhos, embora também seus, é proibido ainda qualquer tentar-viagem.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Roberto era menino de rua vista em sonho,
rua dessas, sem números, onde brincam os meninos do Portinari preso na parede do meu quarto.
Uma noite ele chegou com a mãe e o irmão numa festa na Tijuca
Cantou
Dançou
Pulou
Depois foi metralhado na Rua Uruguai por policiais militares.

Clarice


Tenho conversado desesperada e docemente com Clarice
E a fito como quem se interroga diante do mar,
como a um menino temeroso dos olhos oblíquos do mar.

E mergulho nesses olhos com o mesmo pasmo essencial
com que nos desprendemos da placenta e começamos a prolongarmo-nos por esse desconhecido que é sentir-se.

Clarice não é afeita a etiquetas.
Visita-me pelas horas, pela casa, pelas ruas, por aquela parte de mim até mesmo por mim não sabida,
perto do coração da vida selvagem.

Olhar para Clarice rompe os pontos de um corte ignorado, mas que de tão profundo
me anuncia, nas horas perigosas do viver-se, que tempo de morangos já se arrebenta.

Clarice lambe meu corpo e apara o renitente pingo de chuva que transforma em cinzas minhas horas.
E, por isso, muitos me julgam triste,
mas o que há em mim não é tristeza, é cansaço.

Cansaço dessa nossa tola insistência em calcificar certezas que nós mesmos sabemos rarefeitas.
Cansaço desse nosso parvo e incessante desejo de dominar o que deve ser, o que tem que ser indominável.
Cansaço desses sorrisos desflechados a maçãs no escuro das boates onde somos todos rascunhos do que poderíamos.
Cansaço de um mundo em desconcerto.
Cansaço de caminhar pela cidade e ver pelas calçadas, e sentir pelas calçadas a umidade do humano em nós
e o grito mudo dos nossos
e o nosso silêncio.


Olho mais uma vez para Clarice.
Silêncio.
Se um dia Deus vier à terra haverá silêncio grande – ela, sem palavras, me responde, sempre.